O Teatro Fechado tem a honra de levar à cena: O Auto do Milagre dos Cravos
Todos os personagens pertencem ou pertenceram a uma história de ficção, qualquer coincidência com a realidade, é mesmo e só uma mera coincidência. Aconselhamos ainda que as cenas pouco dignas não sejam vistas por menores.
Cenário:
Os actores encontram-se em pleno deserto com um fundo de um castelo medieval, encimado por aves negras e relâmpagos trovejantes. O séquito da rainha, pouco e mal ataviado, segue-a por entre os cactos e as silvas que se interpõem no caminho. Encontra-se em romaria, para inaugurar mais uma obra de caridade. Ao seu encontro, sem ela saber, vai o seu marido e o seu filho.
Este acto desenrola-se numa época muito conturbada em que os animais falavam e os cargos e honrarias eram herdados por nobre sucessão.
Personagens:
- D. Marocas, rei de um povo à beira mar plantado, gordo, anafado e bochechudo, retirado das lides, o seu maior empenhamento é o de dar entrevistas para a televisão. Quer ainda que o filho lhe suceda na condução dos assuntos do reino.
Vestes de safo, olhos brilhantes marotos, cabelos brancos de profundas arrelias. Viajante de mares nunca dantes navegados. Constantemente ateu, poliglota e republicano q.b. Frase célebre: O meu reino por um avião
- D. Maria, santa de serviço, génio transviado do teatro para os palcos da vida, mãe extremosa, casada com D. Marosca. Tendência para se alapar a lugares que lhe foram confiados. Mau génio quando contrariada. Demonstra uma admiração sobrenatural pelo marido, mas não concorda com as suas herejes tendências. Frase célebre: Mais vale presidente toda a vida do que ex-presidente de cousa nenhuma.
- D. Marocas, Jr., príncipe encantado desta nossa narração, viajante inconfesso de lugares exóticos. Edil de uma cidade de mil cores, dificuldades em arrastar o nome da família que o precede. Tendência em ter desastres em locais ermos e pouco comuns. Retrato fiel do pai, apenas na figura e nos modos. Militante de causas perdidas. Não tem frases célebres.
Capítulo I
Cena I e única.
Narrador (de braços abertos e ar dramático): D. Maria acicatava o condutor do seu coche, último modelo, para que se apressasse, aquela estrada desértica era um mau prenúncio de maus encontros e más recordações.
D. Maria (aos gritos): - Obrigue-me esse burro a andar mais depressa.
Fiel Cocheiro (a cofiar o bigode): - Mas Senhora, tive a liberdade de lhe comprar algo
D. Maria (continua aos gritos): - Meta o algo no cú e a cenoura no burro para ver se nos despachamos, ainda quero ir ao cabeleireiro hoje.
O Burro: (ar assustado): - A cenoura aonde?
Fiel Cocheiro (ar preocupado): - Cala-te, não, não era para si Senhora. Mas e os seus seguidores? Não vão aguentar.
D. Maria (ar de desprezo): - Claro que vão, ande mas é lá mais depressa
O Burro (ar cansado): -Eu é que não aguento
O fiel condutor, qual fiel palafreneiro, chicoteia o burro que de repente desata a correr desalmadamente. Mas eis senão quando, numa curva do caminho, lhes aparecem pela frente dois vultos, fantasmagóricos, envoltos em negras e deslavadas vestes.
O burro estaca, insólito e fremente, o condutor ainda a tremer, houve num repelão D. Maria a reclamar de dentro do coche último modelo.
D. Maria (mais uma vez aos gritos): - Meu grande filho de uma criada, que maneiras são essas de se conduzir, parti umas costelas, e agora? Sabes bem que não tenho assistência hospitalar, vetaram-me as quotas na Cruz Vermelha, meu cocheiro de segunda
Fiel Cocheiro (ar muito preocupado): -Mas Senhora, tibetuou o fiel condutor dois vultos se atravessam no nosso caminho e o burro com o susto parou
O Burro (a verter águas pelo meio das pernas): -Mijei-me .com o susto, esses dois gajos são mesmo feios.
D. Maria salta do coche, levanta as saias, e altaneira dirige-se para os dois vultos.
D. Maria (ar furibundo, aos gritos): - Desimpedi-me o caminho maltrapilhos, tenho que me despachar.
O primeiro vulto faz uma vénia e numa voz sibilante, qual mordaz bobo da corte, pergunta.
D. Marocas (incógnito de todo): - Já não reconheceis a família, Senhora minha?
D. Maria (ar cínico): - Mas não estavas em Bruxelas a comer Belgas (leiam-se bolachas e não liguem ao trocadilho), ou nas Ilhas Caimão a andar de tartaruga? Divino esposo.
D. Marocas (sem incógnito): - Esta mulher está a gozar comigo?
Dirigiu-se D. Marocas para o segundo vulto.
D. Marocas, Jr. (ainda incógnito): - Pai, - disse o segundo vulto pergunta-lhe o que ela leva no real regaço?
D. Marocas (menos incógnito): - D. Maria o que levais no vosso real regaço?
D. Maria (ar de sonsa nº1): - No quê?
Retorquiu D. Maria fazendo-se de sonsa.
D. Marocas, Jr. (pouco incógnito): - Pai, ela está mesmo a gozar contigo
D. Marocas (a espumar de raiva): - Brincais comigo?
D. Maria (ar de lerda): - Não excelso esposo, sou um bocadinho lerda no meu português, desculpai-me. Por momentos pensei que falasses em outra cousa.
E num repente, teatralmente, D. Maria abre o seu regaço, caindo deste uma data de G3, uma quantidade enorme de granadas de mão, umas quantas bazucas, e mais armas do que qualquer humano possa imaginar.
Boquiaberto o Rei, D. Marocas, ajoelhou-se, obrigou o segundo vulto a fazer o mesmo e exclamou.
D. Marocas (branco como a cal): - Mas Senhora, são armas, estais a pensar nalguma revolução? E essas granadas têm cavilha, espero?
D. Maria (ar de sonsa nº2) - Claro D. Marocas tenho-vos ouvido com atenção e ando a tratar de tudo Cavilha é alguma coisa que se coma?
D. Marocas (sobrancelhas arqueadas) - Minha fiel esposa, desculpai-me, mas por momentos pensei que leváveis cravos.
Entretanto esbaforidos e de língua de fora, foram-se aproximando os seguidores de D. Maria que ao inteirarem-se da situação, gritaram em coro.
A Turba e o Burro: (língua de fora e a arfar, o burro de joelhos) - É uma santa
O Rei bem que ficou desconfiado, mas como era ateu, retirou-se prudentemente para a sua Fundação, depois de ter feito umas tantas considerações sobre revoluções e cravos para as estações de TV que entretanto tinham aparecido como por milagre
Fim.
O pano baixa, o único espectador ainda presente, chora comovido desalmadamente.
No final viemos a saber que era surdo, mudo, cego e paralítico, que tinha apenas entrado no teatro porque andava à procura de uma casa de banho e que tinha encravado o pirilau no fecho eclair, também não tinha conseguido fugir porque lhe haviam subtraído as muletas.
Nota do Produtor: Não devolvemos o dinheiro dos bilhetes caso tenha desistido a meio do espectáculo.
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